quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Eu sei, mas não devia

E se recordar também é viver...
Diretamente do livro de interpretação de texto da 8ª série.

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia. A gente se acostuma a morar em um apartamento de fundos e não ver outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender a luz mais cedo. E à medida que e acostuma, se esquece do sol, esquece do ar, esquece da amplidão.
A gente se acostuma a acordar sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo de viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já e noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e ler sobre a guerra. E a aceitar a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja um número para os mortos. Não aceitando a negociação de paz, aceita ler todos os dias sobre a guerra, seus números e sua longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisa tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo que se deseja e necessita. E a lutar para ganhar com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar nas ruas e ver cartazes. A abrir as revistas e ver artigos. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtores de consumo.
A gente se acostuma à poluição, às salas fechadas de ar condicionado e ao cheiro de cigarros. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam à luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À morte lenta dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta por perto.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta lá. Se o cinema está cheio, a gente torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua o resto do corpo. Se o trabalho está duro a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito que se fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem muito sono atrasado.
A gente se acostuma a não ralar na aspereza para preservar a pele. Se acostuma, para evitar feridas e sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e que se gasta de tanto acostumar. Se perde em si mesma.
A gente se acostuma a ser acostumado.
- marina colasanti

1 comentários:

raquel disse...

Pena que eu só tenha lido agora. Caso contrário um dos meus desejos ao pular as ondas teria sido "Não me acostumar!". Adorei o texto.